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Em diversidade e inclusão, considerar as diferentes trajetórias também é muito importante, principalmente em um país desigual como o Brasil. O fator delta, utilizado em alguns processos seletivos, analisa os pontos de partida e percalços até alcançar um ponto de chegada. Dessa forma, as empresas são capazes de escolher pessoas candidatas de forma mais justa.


Imagine o seguinte cenário: um processo de contratação está em sua última etapa, com apenas dois candidatos. Ambos são qualificados, mas um possui diploma universitário e o outro não. Como recrutador(a), a depender da cultura da sua organização, você sabe que será mais difícil convencer a liderança sobre uma pessoa sem diploma. Surgirão perguntas sobre o candidato:

  • Por que a pessoa não fez faculdade?
  • Como ela se qualificou?
  • Quais são os seus certificados?

Consequentemente, o sentimento comum seria contratar a pessoa com o diploma. Mas essa é a decisão certa? 

Vamos dar um passo para trás. Suponha que ambos os indivíduos tenham crescido em suas carreiras e estejam em níveis semelhantes. Mais do que provável, a pessoa sem diploma universitário teve que se esforçar mais para chegar ao mesmo lugar. Quanto maior o esforço da pessoa para alcançar determinada posição, maior é o seu delta. Isso não é algo a se considerar? 

Essa pessoa também pode ter desenvolvido experiências não tradicionais que proporcionaram habilidades como capacidade de aprendizado, resiliência, empatia e criatividade, bem como várias habilidades técnicas e de negociação. E essas são as principais habilidades necessárias para muitos empregadores.

Portanto, o parâmetro de escolha agora é quem domina melhor essas habilidades e como a trajetória de cada pessoa é relevante para essa contratação.

Esforço versus talento

Quantas vezes você não ouviu a frase motivacional “só depende de você” quando esteve diante de um desafio?

Apesar de haver algumas críticas ao estímulo que ela pode gerar e ao quão aplicável é em diferentes realidades, a frase nos traz um ‘Q’ de protagonismo e responsabilidade. Dentro dessa temática, encontramos dois pontos-chave que ora são vistos como complementares ora fazem parte de uma eterna dualidade. Afinal, qual o segredo para alcançar o sucesso em um desafio: esforço ou talento?

Vivemos o ‘culto ao herói’ em nossa cultura de maneira constante e intensa. Colocamos no pedestal pessoas que se destacam em suas respectivas áreas e fortalecemos o discurso do talento inato, algo inerente à personalidade. Por outro lado, falar que alguém é esforçada(o) não soa como elogio e por vezes é tido como uma característica ruim.

Mas será que é por aí mesmo?

A pergunta que sempre trazemos sobre as pessoas bem-sucedidas é como elas são: seu tipo de personalidade, nível de inteligência, estilo de vida e talentos especiais. E presumimos que são essas qualidades individuais que explicam seu sucesso. Mas ninguém surge do nada.

Malcolm Gladwell, no livro “Outliers“, acredita que devemos alguma coisa à nossa rede de apoio. As pessoas que mais “se deram bem” são invariavelmente beneficiárias de vantagens ocultas, oportunidades extraordinárias e legados culturais que lhes permitiram aprender, trabalhar duro e entender o mundo de uma forma que os outros não conseguiram.

Sabemos que algumas das nossas características são determinadas pela genética, enquanto outras são resultado cultural, mas todo traço humano é influenciado tanto pelos genes quanto pelo ambiente.

O lugar e a época em que crescemos fazem diferença. A cultura a que pertencemos e os legados transmitidos por nossos ancestrais moldam os padrões de nossas realizações de formas inimagináveis. Em outras palavras, não basta querer saber como são as pessoas de sucesso, sua origem também é essencial.

Meritocracia e desempenho

A meritocracia é um tema bastante polêmico no mundo corporativo porque, por vezes, ignora o viés social ao qual está intimamente ligado. Tábata Amaral, deputada federal de São Paulo, nos traz uma perspectiva diferente sobre isso. Apesar da origem humilde, ela se recusa a atribuir suas conquistas à meritocracia:

Por muito tempo a minha história foi contada quase como uma história de herói, de um exemplo de ‘quem quer, consegue, é só se esforçar’. Mas isso não está certo. De fato, eu me esforcei muito, mas é preciso ter acesso a oportunidades e a crença de que você pode sonhar diferente, sonhar grande“, afirma. “Mas a gente está em um país onde há muitas desigualdades. Minha crítica não é quanto à meritocracia em si, mas em querer aplicá-la quando o ponto de partida é desigual“, acrescenta.

Voltando para o esforço versus (ou plus) talento, a autora do livro “Mindset“, Carol Dweck, segue uma linha semelhante à de Malcolm e pontua que o verdadeiro potencial de uma pessoa é desconhecido. Para ela, o esforço, a paixão e o treinamento são a tríade mais importante no processo de autodesenvolvimento.

E é muito fácil falar sobre esforço, mas nem sempre é fácil colocar em prática. Em “O Poder do Hábito“, Charles Duhigg mostra estudos que apresentam a força de vontade como uma habilidade. Quando você cria um hábito, parte do que está acontecendo é que você está mudando o seu modo de pensar. “E uma vez que você entrou nesse sulco criado pela força de vontade, seu cérebro tem prática em ajudar você a se concentrar num objetivo“.

Angela Duckworth, autora de “Garra“, traz esse sinônimo como forma de explicar sua teoria. Garra é uma combinação entre paixão e determinação, a capacidade de perseverar e produzir resultados além do puro talento, da sorte ou das eventuais derrotas, é a disponibilidade de se comprometer de fato com os objetivos.

Entrando em uma onda matemática, para ela o esforço conta em dobro. O talento seria a rapidez com que as habilidades de uma pessoa aumentam quando ela se esforça e êxito é o que acontece quando uma pessoa utiliza as habilidades adquiridas.

talento x esforço = habilidade

esforço x habilidade = êxito

Independentemente da matemática, é fato que o mundo corporativo tem dificuldade tanto de entender a importância da análise de trajetórias como também de implementar ações práticas que auxiliem em processos seletivos mais justos. Por isso é importante buscar conhecimento e referências externas de quem já avançou no tema.  

Case Vetor Brasil

O Vetor Brasil é uma organização da sociedade civil (OSC) suprapartidária e sem fins lucrativos que acredita no poder de transformação da sociedade a partir do setor público. Por isso busca contribuir para a efetividade da gestão pública a fim de sempre melhorar a ação do governo – e não substituí-lo. 

A instituição acredita em um país no qual todos tenham oportunidades iguais. Por isso, trabalha-se para que todos que desejam ser parte da mudança, como participantes dos programas do Vetor Brasil, tenham a oportunidade de fazê-lo. Em seu posicionamento, afirma que em sociedades tão desiguais como a brasileira há uma distorção do conceito de meritocracia – que não favorece os melhores, mas apenas os que tiveram mais oportunidades. 

Diante desse cenário, o Vetor Brasil faz questão de reconhecer a trajetória dos candidatos inscritos em seus processos seletivos, considerando-as elementos relevantes de análise dos candidatos. 

Buscando consolidar este entendimento, desenvolveu-se um conceito próprio de delta: chama-se de delta a diferença entre o ponto de partida e o ponto de chegada na trajetória dos candidatos do processo seletivo.

Pessoas que apresentaram um alto delta ao longo de suas trajetórias saíram de pontos de partida com poucas oportunidades e, mesmo assim, conseguiram se formar e estar no processo seletivo do Vetor Brasil, apresentando conquistas e aprendizados de natureza diversa. Ou seja, fizeram muito, mesmo com pouco acesso a recursos. 

A instituição acredita que profissionais com delta elevado são expostos a condições que permitem o desenvolvimento de competências como a resiliência e a capacidade de aprendizado, essenciais para o Programa Trainee de Gestão Pública

Pessoas com delta maior percorreram um caminho mais árduo para chegar aonde elas estão, a partir de um ponto de partida com poucos recursos para conquistar algo. Em suma, o delta é um espectro individual encarado como um indicador de diversidade focado no nível socioeconômico. Alguns parâmetros são mensurados para calcular o delta, tais como:

  1. Qualidade da educação básica;
  2. Dificuldade para permanecer no ensino básico;
  3. Condição financeira durante o ensino superior;
  4. Características dos responsáveis pela criação;
  5. Vulnerabilidade social da região onde mora/morou;
  6. Autodeclaração.

O delta é adotado como acréscimo no cálculo de compatibilidade entre a demanda dos governos e o perfil dos finalistas, servindo de mecanismo de priorização ao facilitar que os candidatos com menos recursos financeiros sejam alocados nos governos parceiros do Vetor Brasil mais rapidamente.

Além disso, sabe-se que muitos trainees podem precisar de apoio financeiro nos primeiros meses do programa (para arcar com os custos de mudança para um novo estado, por exemplo) ou também em outros momentos da sua trajetória. Assim, em condições específicas, o Vetor Brasil se disponibiliza a conceder empréstimos sem juros. Nesse caso, o delta é utilizado para decidir a modalidade de empréstimo (valor e parcelamento) ao longo do Programa Trainee de Gestão Pública, considerando os contextos socioeconômicos de cada trainee.

Assim, tornando-se capaz de medir o delta no processo seletivo com cada vez mais precisão, o Vetor Brasil terá condições de tornar a sua rede ainda mais diversa em termos socioeconômicos.

Em entrevista para nosso artigo, Tamara Andrade, Diretora de Produto do Vetor Brasil, compartilhou quais foram as referências no processo de construção do delta. “Fizemos algumas conversas e analisamos a metodologia do Instituto Ismart, da Secretaria de Assistência Social da USP (SAS USP) e da Laboratoria.la. Ainda fizemos análises de dados do IBGE”, afirmou.

Ela também ressaltou a importância das organizações terem alguma forma de medir a trajetória dos candidatos e avaliá-los de maneira diferente, independentemente de ser do primeiro, segundo ou terceiro setor. Para Tamara, se o objetivo da empresa é que os produtos e serviços idealizados possam conversar com os diferentes públicos, é necessário ter colaboradores que representem de alguma forma essa diversidade.

Você não sabe o quanto eu caminhei…

Parafraseando Cidade Negra, de fato muitas vezes não temos consciência do quão difícil foi para algumas pessoas conquistar um objetivo.

No universo de gestão de pessoas, é cada vez mais essencial que o delta dos candidatos seja considerado em um processo para que a contratação seja humana e conectada com a realidade do nosso país. Além disso, a verdade é que não existe nenhuma receita de bolo,que tanto o esforço quanto o talento são muito importantes na nossa trilha de evolução, e isso é um fato. 

Também podemos concordar que o esforço geralmente apresenta um peso maior e que a hipervalorização do talento deve ser questionada. Mas é claro que, no final das contas, você deve entender que na verdade a integração e a busca pelo aprimoramento dessas esferas irão ajudar em qualquer que seja o seu objetivo.

Entendendo que cada jornada é única e cada um tem o seu próprio tempo, isso significa tentar, a cada dia, encontrar a melhor versão de si mesmo e do outro!

Concorda? Então, se quiser ver mais conteúdos como esse, assista o nosso talk sobre atração e seleção de jovens talentos.

Victor Feitosa

Comunicólogo cearense que atua com programas de desenvolvimento pessoal. Um estudioso e apaixonado por educação, liderança e diversidade. Acredita que esses três pilares podem mudar o mundo se tivermos as pessoas certas nos lugares certos. No mais, adora filmes de terror, séries intrigantes e música pop.

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