Pular para o conteúdo principal

Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista. Acreditamos que as empresas devem se preocupar cada vez mais em, além de ser mais inclusivas, se envolver no combate ao racismo e à injustiça social. É preciso ir além, abraçar a diversidade, promover debates, educar os colaboradores e, principalmente, fazer valer as políticas antirracistas.


Segundo o IBGE, a maioria da população brasileira é negra, mais especificamente 55,8% do país. O instituto considera a soma entre quem se declara preto (9,3%) e pardo (46,5%).

Não apenas isso, uma material especial da UOL sobre empresas contra o racismo aponta que a população negra não só é a parcela majoritária no país, como também um grande público consumidor. De acordo com o Instituto Locomotiva, este público movimenta R$ 1,7 trilhão por ano.

Já no mundo corporativo foi constatado em pesquisa do Instituto Ethos que na gerência e em quadros executivos, os negros são 6,3% (0,6% pretos; 5,7% pardos) e 4,7% (0,5% pretos; 4,2% pardos), respectivamente.

Por outro lado existe uma presença maior de pessoas negras atuando nas empresas como aprendizes e trainee, que em ordem representam: 57,5% (12,2% pretos; 45,3% pardos) e 58,2% (2,5% pretos; 55,7% pardos). No quadro funcional, a porcentagem é de 35,7% (7% pretos; 28,7% pardos).

Portanto, existe um funil explícito: quanto maior o cargo, menor é a presença de negros. Porque?

Racismo estrutural e reparação histórica

A discriminação de minorias é fato recorrente ao longo da história. Não só na sociedade brasileira, mas em todo o mundo.

Para ajudar a entender esse contexto, a EducAfro fez um compilado de 7 atos oficiais na história brasileira que contribuíram com a marginalização da população negra. Em suma, estes são:

#1 Implantação da escravidão no Brasil

Através da Bula Dum Diversas, de 16 de junho de 1452, o papa Nicolau declara ao Rei de Portugal a “(…) plena e livre permissão de invadir, buscar, capturar e subjugar os sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimigos de Cristo, onde quer que estejam”. Esse é o ponto de partida da história do povo indígena e africano na sociedade brasileira: a retirada do seu direito de ter bens, de ser cidadão e em última instância, de ser humano.

#2 Lei complementar à Constituição de 1824

“(…) pela legislação do império os negros não podiam frequentar escolas, pois eram considerados doentes de moléstias contagiosas.”  Juridicamente este decreto agiu até a proclamação da República, em 1889. Portanto ainda que conseguisse alforria, o povo negro era proibido por lei de estudar.

#3 Lei de Terras de 1850, nº 601

A partir dessa lei as terras brasileiras só poderiam ser obtidas através de compra. Portanto, o exército brasileiro ganha justificativa legal para destruir os quilombos, retirando o acesso dos negros e negras a posse de terras.

#4 Guerra do Paraguai (1864-1870)

Para dar conta do conflito que já durava quase dois anos, o Império do Brasil criou o decreto nº 3.725 de 6 de novembro de 1866,  que permitia a alforria de escravos em troca de serviço militar – e dinheiro para o “seu senhor”. Junto a isso, o alistamento compulsório e a compra de substitutos também contribuíram para o envio do povo negro da lavoura direto para a guerra. Mas, proibido de acesso à educação e terra, de pouco adiantava essa liberdade aos sobreviventes.

#5 Lei do Ventre Livre (1871) e #6 Lei do Sexagenário (1885)

Respectivamente, as leis dizem que “toda criança que nascesse a partir daquela data nasceria livre”, e “todo escravo que atingisse os 60 anos de idade ficaria automaticamente livre”. Porém sem nenhuma medida de ressocialização, essas ações contribuíram na prática para aumentar marginalização, afinal o “senhor” não tinha mais a responsabilidade de prover alimentação e moradia a crianças e idosos.

#7 Decreto 528 das imigrações europeias (1890)

Após a proclamação da República, a industrialização do país passou a ser foco. Nesse contexto, o governo escolhe, por meio desse decreto, incentivar as imigrações europeias para preencher essa demanda ao invés de empregar a população libertada da escravidão, limitando assim o acesso ao emprego e geração de riqueza.

Essas são apenas algumas das sucessivas barreiras levantadas contra a população negra ao longo da história, mas que já elucidam bem nosso contexto de racismo estrutural e a necessidade de reparação.

O começo da reparação histórica: a educação

No campo educacional, a busca para reverter essa disparidade socioeconômica criada demoraram bastante a ocorrer. O movimento começou no estado do Rio de Janeiro, onde houve a aprovação da lei estadual 3.524/00, de 28 de dezembro de 2000, que garantiu uma reserva de 50% das vagas nas universidades para estudantes das redes públicas de ensino. 

Esta lei passou a ser aplicada no vestibular de 2004 da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). No ano seguinte, em 9 de novembro de 2001, instituiu-se o sistema de cotas para estudantes denominados negros ou pardos, com percentual de 40% das vagas das universidades estaduais do Rio de Janeiro.

Depois da UERJ, a Universidade de Brasília (UnB) se propôs a estabelecer as ações afirmativas para negros no vestibular de 2004. A instituição foi a primeira no Brasil a adotar as cotas raciais. De lá para cá, várias universidades e faculdades adotaram sistemas de ações afirmativas para os vestibulares e exames admissionais.

A consolidação das cotas aconteceu principalmente com a lei nº 12.711, de agosto de 2012, conhecida também como Lei de Cotas. Ela estabelece que as instituições públicas de ensino superior devem destinar parte de suas vagas para estudantes egressos de escolas públicas, levando em conta critérios raciais e sociais.

Antirracismo no trabalho

O avanço na democratização do acesso à educação também impulsionou a qualificação e entrada de pessoas negras no mercado de trabalho. Esse cenário trouxe consigo novas questões sobre relações sociais e escancarou um tema antigo: o racismo.

Desde a morte brutal de George Floyd nos EUA, sufocado por um policial branco no fim de maio, o mundo passou a discutir o racismo e como ele afeta a população negra em seus diversos âmbitos.

A repercussão do caso foi tamanha que grandes empresas passaram a fazer o chamado ativismo de marca, quando companhias se posicionam a favor de uma causa. Neste caso, condenando a discriminação racial com posts em redes sociais ou anunciando doações em dinheiro para instituições ligadas à causa negra.

Já outras empresas decidiram liderar uma mudança e agir ativamente pela causa. Essa foi a escolha da Magazine Luiza, que optou por recrutar apenas pessoas negras para o seu próximo programa de trainees.

A decisão da empresa abriu uma disputa nas redes sociais entre os que elogiam a medida e aqueles que acusam a Magalu de “racismo reverso” com brancos, usando a hashtag #MagazineLuizaRacista. Em nota, a organização se pronunciou:

“Se há deficiências, se há lacunas de formação, queremos dar a oportunidade para que elas sejam preenchidas e para que o potencial se torne real. Queremos ver mais negros na liderança da Magalu. Não se trata de caridade. Somos uma empresa, não uma ONG, e estamos convictos de que a diversidade nos tornará uma companhia melhor, capaz de gerar mais retorno aos acionistas.

Não temos a pretensão de tentar corrigir mazelas históricas do país, nem de sermos vistos como modelo por outros. Mas temos a obrigação de corrigir tudo aquilo que consideramos como os nossos problemas. É isso o que estamos fazendo – sem nenhuma possibilidade de retorno.” Frederico Trajano, CEO da Magazine Luiza.

Outras empresas também se posicionaram a favor da causa, como a Uber, que elaborou um manifesto intitulado sobre os compromissos de ser uma empresa antirracista. Como exemplo de ação concreta, o aplicativo vinculou a remuneração dos principais executivos às métricas de diversidade e afirmou acompanhar ativamente seus dados para alcançar a equidade salarial. 

O que mais sua empresa pode fazer sobre isso?

O movimento Seja Antirracista propõe um espaço de comprometimento público de pessoas e empresas que entendem que vidas negras importam. E mais do que não ser racista, é preciso ser antirracista e ter práticas antirracistas no dia a dia, no enfrentamento ao racismo estrutural e institucional.

É preciso ir além de posts mediante a casos midiáticos. É preciso ação.

O que são ações afirmativas e por que elas são necessárias?

As ações afirmativas se definem como políticas públicas e privadas voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e contra pessoas com deficiência. 

A ideia aqui é combater não somente manifestações evidentes de discriminação, mas também a discriminação de fato, de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade. A igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade. 

As ações afirmativas são necessárias, tendo em vista que pressupõe uma alternativa histórica de desigualdades e desvantagens acumuladas e vivenciadas por determinado grupo racial ou étnico, são medidas que facilitam o acesso de todos os grupos às oportunidades.

O que diz o Ministério Público do Trabalho?

Em virtude da repercussão dos recentes programas de seleção da Magazine Luiza e da Bayer, o Ministério Público do Trabalho (MPT) tornou pública a sua posição de reafirmar a defesa do Estado Democrático de Direto pela adoção de medidas que visem a promoção da igualdade no mercado de trabalho por meio de ações afirmativas. 

Essa ação se tornou necessária porque não existe uma lei específica e detalhada sobre o direito das empresas privadas de reservar vagas para pessoas negras ou outros grupos.

Em nota oficial o MPT citou artigos, convenções e estatutos reconhecidos pelo Superior Tribunal Federal que se enquadram como discriminação positiva por promover igualdade de oportunidades por meio de ações afirmativas:

  • o Artigo 5º da Constituição Federal (CF) de 1988 garante que todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza, assegurando uma vida digna, livre e igualitária a todos os cidadãos do Brasil;
  • a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial decretou que é obrigação do Estado promover ações que garantem o processo de reinserção das pessoas negras para que elas possam gozar dos mesmos direitos políticos, sociais e econômicos de todos;
  • o Estatuto da Igualdade Racial, decretado em 2010, não cita nada específico sobre processos seletivos privados, mas fala sobre a igualdade de oportunidades por meio de programas, ações e medidas afirmativas públicas;
  • a Lei de Cotas, que já citamos aqui no artigo, garante cotas para negros nas instituições federais de ensino superior;
  • a Lei nº 12.990 de 2014 reserva 20% das vagas oferecidas em concursos públicos para pessoas negras;
  • recentemente o Poder Judiciário definiu que irá reservar 30% das suas vagas de estágio para negros, definição que foi aprovada por unanimidade pelo plenário do Conselho Nacional de Justiça.

O Ministério Publico do Trabalho também reforça o chamado às empresas para a execução do Projeto Nacional de Inclusão de Jovens Negras e Negros e incentiva o uso das ações positivas para promoção da igualdade racial no trabalho, convidando trabalhadores, empregadores e sociedade a se unirem em torno desse propósito maior: a realização dos princípios da igualdade e da justiça social.

A sua empresa está comprometida?

Acreditamos que o RH tem a responsabilidade de ser inclusivo, e olhar para questões de diversidade com atenção para construir ambientes mais justos e respeitosos. 

Ao apoiar colaboradores em movimentos contra racismo e injustiça social, a Harvard Business Review sugere quatro iniciativas que gostamos bastante. Elas são:

Iniciativa #1: identifique o dano sem ser defensivo

Defensividade é uma reação comum ao acordar para a realidade de que o racismo está operando em seu relógio. Você pode se sentir pessoalmente responsável pelos danos descritos. Inclusive, você pode até ser em alguns casos. Mas não é ficando na defensiva que vamos conseguir interromper os padrões prejudiciais. Para começar é preciso escuta e aprendizado.

Em algumas empresas, identificar os danos é tão simples quanto perguntar aos funcionários negros sobre suas experiências ou examinar os dados já coletados.

Iniciativa #2: seja específico sobre ações internas e externas

Declarações gerais e abstratas que meramente denunciam a brutalidade policial soam mais como um político tentando obter votos do que uma instituição responsável com a mudança. Diga às pessoas o que você é contra, sem ter que se comprometer a ser a favor de nada. Mas talvez agora, mais do que nunca, apenas falar seja considerado como um ato muito fácil.

Os funcionários estão atentos às diferenças entre declarações políticas e compromissos reais. Um exemplo notável ​​de empresas comprometidas com ações específicas é a distribuidora de jogos americana, a Activision, que adicionou recursos e sistemas de relatório no jogo para identificar e proibir a linguagem racista em seu ambiente de jogo online. 

Iniciativa #3: lide com o desconforto

É muito comum se deparar com executivos de alto escalão fazendo declarações que deveriam ser relevantes, mas seus gerentes não conseguem traduzir a mensagem. Às vezes esses gerentes propagam a mensagem sem jeito, se atrapalham com as palavras ou fogem completamente do problema. 

Esse desconforto não pode ser um obstáculo à mudança! Mesmo sendo um tema sensível, você pode fornecer treinamentos que ajudem os gerentes a refletir e falar sobre raça e racismo – e não apenas sobre a raça dos outros, mas sobre sua experiência racializada pessoal. Para que haja uma mudança sustentável, toda a liderança, especialmente pessoas brancas, precisam lidar com seu desconforto e seguir em frente.

Iniciativa #4: seja responsável 

Se sua organização se posicionar contra o racismo, você também deve articular como o progresso será rastreado e comunicado em toda a empresa. Não há necessidade de vergonha ou culpa se seus resultados não forem brilhantes ou rápidos de início, mas o importante é que haja transparência e consistência.

Mergulhe e faça o trabalho como faria com uma nova conta ou uma cobiçada oportunidade de crescimento. Por exemplo, considere o que é necessário para se comprometer a levantar pesos e ficar mais forte. Você não entraria na academia, levantaria um peso pesado uma vez e e pronto, está forte! Na verdade, buscaria orientação especializada e então se responsabilizaria por levantar esses pesos de maneira consistente ao longo do tempo, acompanhando os resultados e ajustando seu caminho a partir dos avanços. 

Você pode evitar um treino, mas isso apenas torna os ganhos mais difíceis de obter a longo prazo. Construir a capacidade de ser antirracista também exige compromisso ao longo do tempo, envolve trabalho árduo e que nem sempre é agradável. No entanto, os resultados – uma empresa mais forte – valem a pena.

Por fim, uma oportunidade: evento Afro Presença 2020

Idealizado pelo Ministério Público do Trabalho e com realização do Pacto Global da ONU, e contando com a Eureca como uma das empresas parceiras, o encontro virtual Afro Presença vai acontecer nos dias 30 de setembro e 1 e 2 de outubro deste ano. O objetivo do projeto, que tem apoio do poder público, da iniciativa privada e da sociedade civil, é a inclusão de jovens negros, que estão atualmente no ensino superior, no mercado de trabalho.

Pensando em reverter o quadro de desigualdade, o encontro vai oferecer oficinas de recursos humanos, debates, painéis com empresas, agências de publicidade, universidades e escritórios de advocacia aos participantes. Os participantes do projeto também vão poder compartilhar seus currículos e acessar vagas de trabalho. Venha ver!

Aproveite também para fazer o download do nosso ebook sobre jornada de diversidade para obter um ambiente de trabalho mais inclusivo. Compartilhe!

Victor Feitosa

Comunicólogo cearense que atua com programas de desenvolvimento pessoal. Um estudioso e apaixonado por educação, liderança e diversidade. Acredita que esses três pilares podem mudar o mundo se tivermos as pessoas certas nos lugares certos. No mais, adora filmes de terror, séries intrigantes e música pop.

Um Comentário

Deixe uma Resposta